O patriarcado é um sistema que compactua com outras estruturas hierarquizantes e geradoras de opressão, injustiça e valores diferenciados. Desde o advento da propriedade privada, com o surgimento do capitalismo, o patriarcado vem se fortalecendo com base em inúmeros motivos que se pautam desde à religião, até à lógica biologista que analisa os funcionamentos dos corpos e nos encarcera, com o aval científico, em papeis muito mais antigos que a própria ciência.
Entretanto,
embora seja visivelmente fortalecido pelos demais sistemas opressores que se
estruturam na sociedade capitalista ocidental, o Patriarcado mostra-se cada vez
mais um sistema de complexidades e
peculiaridades distintas. Sendo, por isso, não só mera consequência do
capitalismo, mas um sistema que garantiu sua autonomia e que pode ser
perpetuado também em outras organizações sociais.
Breve delineação histórica do
patriarcado e do capitalismo.
O
mercado faz uma profunda inversão de valores a partir do momento que evidencia
o capital e exige do ser humano maior dedicação à produção de mercadorias,
relegando ao campo privado e particular, características desmoralizantes por
não contribuir com o crescimento econômico da nação.
Assim,
por conta suas características físicas, a mulher fica encarcerada unicamente no
campo particular, do cuidado da casa e dos filhos, e os saberes ali
desenvolvidos, saberes muito próximos da natureza, do cuidado das ervas entre
outras coisas, são renegados, desvalorizados e subjulgados[1].
Entretanto,
com a revolução industrial no século XIX, a Europa protagoniza o crescimento
abrupto de uma classe social potencialmente revolucionária, o proletariado,
onde se encontravam não somente homens, mas mulheres e crianças. Todxs
trabalhando em situações análogas à escravidão, porém, com maior desvalorização
econômica de crianças e mulheres, as quais trabalhavam em jornadas tão
exaustivas quanto os homens, mas ganhavam muito menos que eles.
Andrea
Nye, no livro, Teoria feminista e as filosofias dos homens, faz uma análise dos
principais acontecimentos históricos da humanidade, bem como sobre o surgimento
das principais correntes filosóficas que tentavam dar novo sentido e novo rumo
à história da sociedade, evidenciando os movimentos de mulheres que sempre
tentaram, de alguma maneira, fazer com que a revolução fosse também um assunto
feminino.
Dentro
dessa perspectiva, Nye traz à tona as discussões que foram empreendidas no século
XIX sobre a participação feminina no mercado de trabalho, de forma que as
mulheres pudessem então contribuir com a economia e com a política do país,
saindo do subjulgamento de seus maridos. A proposta, entretanto, só parecia
inovadora para as mulheres da classe burguesa, que ainda empreendiam somente o
papel de donas de casa e de mães, pois as mulheres das classes baixas já
participavam do mercado de trabalho, afinal, a revolução industrial introduziu
as máquinas na produção de mercadorias, fazendo com que as mesmas substituíssem
a força física pelo puro uso da técnica[2].
Assim, mulheres e homens poderiam integrar com igualdade as mesmas tarefas no
cenário industrial.
Entretanto,
não havendo um debate aprofundado sobre os papeis de gênero, a mulher que
entrou no mercado de trabalho, continuou sendo refutada para os papeis
domésticos (fazendo com que a dupla jornada de trabalho fosse quase
compulsória), sendo limitada em estereótipos que também colocavam em cheque sua
capacidade nas indústrias, fazendo com que as mesmas não fossem reconhecidas e
nem respeitadas no papel que desempenhavam como trabalhadoras no mercado
industrial.
Movimentos de esquerda e machismo
ao longo da história.
Mesmo
em meios revolucionários, onde se objetivava a superação de modelos econômicos
geradores de hierarquias opressoras e infundadas, o pensamento machista
continuava a repercutir, limitando e ridicularizando os variados movimentos de
mulheres que surgiram ao longo da história.
Karl
Marx, no consagrado Manifesto do Partido Comunista, pretendendo acabar com a
propriedade privada, bem como substituir a imagem da tradicional família
burguesa, esboça um modelo de relações livres e diz que as mulheres passariam a
ser socializadas ou, para ficar mais
claro, compartilhadas. Dessa maneira fica explícita a forma como gênero
feminino é objetificado e tratado como propriedade.
Há
uma profunda contradição entre os movimentos revolucionários no que tange a
questão de gênero. Os homens, estando em uma posição de vantagem e
superioridade garantida historicamente pelo Patriarcado, eram os únicos a
receberem educação acadêmica, e por isso, os primeiros a formularem
alternativas de organizações sociais. Por esse motivo, ficava claro que,
estando em posição de vantagem, ficava difícil que os mesmos questionassem os
papeis compulsórios de gêneros e a opressão sob as mulheres nos novos modelos
de sociedade. Mesmo se empenhando na formulação de sistemas menos opressores, o
machismo não era visto como um problema, ou como uma forma de opressão, e ao
contrário, era até mesmo mantido por meio de falas que retificavam os papeis
limitados destinados às mulheres.
Apenas
alguns homens e alguns movimentos se empenharam na luta pela igualdade entre
homens e mulheres, entretanto, sendo considerada uma pauta secundária, nunca
foi plenamente tratada dentro de sua complexidade. Mulheres dentro dos
movimentos de esquerda eram limitadas a simplesmente endossarem a opinião de
seus maridos. E quando as mesmas tentavam expressar sua autonomia, a maneira
que encontravam para protestarem (muitas vezes através de panelaços) era
considerada histérica e ridícula para os moldes da “política séria” e
burocrática organizada pelos homens.
Movimentos anarquistas atuais e a
reproduções de opressões machistas.
Somando
todos os motivos já citados que fizeram com que muitos movimentos de esquerda
negligenciassem as pautas de gênero, sendo até muitas vezes promotores da ordem
machista do patriarcado, podemos colocar o anarquismo como outro movimento que
cai constantemente em tal contradição.
Entretanto,
é válido ressaltar: Não é pauta dos movimentos de esquerda levar as opressões
do Patriarcado para outras organizações sociais. Há inclusive um estudo sobre a
igualdade de gênero como uma proposta que surgiu no meio anarquista, comentada
pelos principais teóricos do movimento: Bakunin, Malatesta e outros. A autora
do referido artigo diz:
“Para
Bakunin o casamento civil e religioso, típico da sociedade burguesa, era
duplamente negativo. Primeiro porque, na qualidade de um contrato civil,
regulamentava e disciplinava a família, circunscrevendo o espaço da
sexualidade, prescrevendo a submissão da esposa ao marido e delimitando os
papéis sociais/sexuais do casal. Segundo porque, na condição de um contrato
econômico, normalmente endógeno, preservava e ampliava a riqueza de um
determinado segmento social, mantendo, assim, a dominação de classe” (MARTINS,
Angela, p. 2).
Como
podemos ver, o machismo encontrado nos movimentos sociais de esquerda é
encontrado não por ser levado como pauta, mas simplesmente por uma displicência
de tais organizações esquerdistas na completa desconstrução dos preconceitos do
sistema Patriarcal. Nos meios intelectuais, a opressão de gênero é abordada
como uma consequência de um sistema maior de opressões, quando na verdade, o
Patriarcado paira sobre a sociedade com uma autonomia e independência
impressionantes. Portanto, não é suficiente tocar de leve as questões de
gênero, como faz o anarquismo. É preciso de uma profunda desconstrução, bem
como de todo um esforço voltado para aniquilar o patriarcado, tratando-o como
um problema de complexidade e autonomia próprias, e que não podem ser relevadas
ou deixadas como luta de segunda ordem, sob nenhuma hipótese.
Assim,
como consequência dessa crítica rasa ao machismo, é possível encontrar hoje em
dia diversos Coletivos que se organizam segundo a filosofia libertária, e que
infelizmente ainda traz muito explicitamente absurdos comportamentos machistas
da estrutura patriarcal. Várias páginas feministas denunciam constantemente
abusos e violências cometidas dentro de meios anarquistas. Os mesmos meios e
movimentos que lutam contra a opressão da classe trabalhadora, do outro lado,
ajudam a perpetuar pensamentos e atitudes preconceituosas com as mulheres. Como
exemplo dessas constantes contradições podemos trazer algumas músicas:
Mulher Enrustida
Os Replicantes
Mulher Enrustida Não adianta só ficar me encarando
Não adianta só ficar se mostrando
Eu já cansei de ficar só te secando
Eu quero mais é que você vá chupando
Eu to de saco cheio de mulher enrustida
Eu quero ser levado e servir de comida
Eu to de saco cheio de mulher enrustida
Ao menos seja boa e vá pagando a bebida
Mas se você continuar se amarrando
Não pense que é tão fácil, eu já vou avisando
Tá chegando agora uma gata brilhando
Eu acho que você não tá mais agradando
Eu to de saco cheio de mulher enrustida
Eu quero ser levado e servir de comida
Eu to de saco cheio de mulher enrustida
Ao menos seja boa e vá pagando a bebida
Mulheres II
DFC
Mulher tem que apanharMulher tem que cozinhar
Mulher tem que calar
Mulher tem que lavar
Mulher tem que passar
Mulher tem que me dar
Mulher tem que costurar
Mulher tem que encerar
Mulher tem que chupar
Tem que sofrer
Tem que fuder
Tem que mexer
Tem que gemer
Tem que me dar
Tem que apanhar
Tem que calar
Tem que chupar
Sem reclamar!
O Dotadão Deve Morrer
Ratos de Porão
Ratos de Porão
O dotadão
arrastou
Todas as garotas
Para a casa dele
O dotadão arrastou
Todas as garotas
Para fora do bar
Todas as garotas
Para a casa dele
O dotadão arrastou
Todas as garotas
Para fora do bar
Hey
rapazes
Esse cara deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
Esse cara deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
O dotadão
arrastou
Todas as garotas
Para o carro dele
O dotadão arrastou
Todas as garotas
Para fora do bar
Hey rapazesTodas as garotas
Para o carro dele
O dotadão arrastou
Todas as garotas
Para fora do bar
Esse cara deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
Deve morrer
Todo mundo enlouquece
Sem mulher
Todo mundo enlouquece
Sem mulher
Fernandinho Viadinho
Garotos Podres
Quando ele era pequeno,
Era o maior bicha
Do colégio interno,
Mas quando ele cresceu
Resolveu tomar a linha!
Aprendendo karatê,
Pra bater nas menininhas!
Fernandinho Viadinho!
Das festas de embalo
Do baixo Leblon
As orgias em Brasília
Agora só passa a mão
Na poupança das velhinhas!
As músicas demonstram o
perigo de um meio pretensamente revolucionário que, entretanto, não assume a
desconstrução patriarcal. Muitas dessas letras acabam parecendo até uma
conversa entre colegas, onde os integrantes assumem suas preferências, fazem
suas ‘brincadeiras’ sobre o sexo oposto, e reproduzem opressões e preconceitos
como se fossem inofensivos.
Essas características
revelam outro problema: a ausência da voz feminina como força autônoma e ativa
na construção de outro modelo de organização social. A ausência dessa voz
permite que o lugar de privilégio dos homens seja assegurado, uma vez que
homens acomodados com os confortos garantidos pelo patriarcado se tornam os
próprios defensores de tal sistema, obviamente.
Reivindicar, resistir, constuir.
A resposta do movimento feminista deve vir de encontro com as incoerências ideológicas de tais movimentos ditos combativos, anticapitalistas e anti-imperialistas, apontando para a falha de se construir movimentos de esquerda que não tangem as questões de gênero, ou que as colocam como secundárias. Essa resposta, entretanto, deve-se dar para além do confronto intelectual ou ideológico. Devemos ocupar a esquerda com a nossa voz, não apenas esperando um espaço para as nossas pautas, mas colocando-as como parte integrante de todo o processo de questionamento das bases opressoras. Devemos nos confrontar a ponto de combater nossas inseguranças, para que possamos com mais força nos posicionarmos diante de argumentos equivocados nos movimentos de esquerda que apontem para o mais sutil desleixo com as questões de gênero, ou que mostrem mesmo o mínimo pensamento machista e patriarcal. Por fim, devemos nos conscientizar que ou a libertação se dará por completo, entre gênero, classe e cor, ou não haverá revolução de fato.
Reivindicar, resistir, constuir.
A resposta do movimento feminista deve vir de encontro com as incoerências ideológicas de tais movimentos ditos combativos, anticapitalistas e anti-imperialistas, apontando para a falha de se construir movimentos de esquerda que não tangem as questões de gênero, ou que as colocam como secundárias. Essa resposta, entretanto, deve-se dar para além do confronto intelectual ou ideológico. Devemos ocupar a esquerda com a nossa voz, não apenas esperando um espaço para as nossas pautas, mas colocando-as como parte integrante de todo o processo de questionamento das bases opressoras. Devemos nos confrontar a ponto de combater nossas inseguranças, para que possamos com mais força nos posicionarmos diante de argumentos equivocados nos movimentos de esquerda que apontem para o mais sutil desleixo com as questões de gênero, ou que mostrem mesmo o mínimo pensamento machista e patriarcal. Por fim, devemos nos conscientizar que ou a libertação se dará por completo, entre gênero, classe e cor, ou não haverá revolução de fato.
[1]
Rosiska Darcy de Oliveira, em Elogio da Diferença, faz uma interessante análise
sobre a desvalorização do feminino como campo que não contribuía com as
características do campo público, destinado ao masculino e às negociações
políticas e econômicas.
[2]
Simone de Beauvoir, no seu aclamado livro Segundo Sexo, faz uma análise
minuciosa sobre a situação da mulher, passando desde os tempos pré-históricos,
até a sociedade moderna. Assim, Beauvoir analisa a opressão feminina mantida
por conta de seu papel desempenhado na reprodução, o qual era relacionado mais
à repetição da vida do que à superação da vida.